Este ensinamento e este aprendizado têm de
partir, porém, dos “condenados da terra”, dos oprimidos, dos esfarrapados do
mundo e dos que com eles realmente se solidarizem. Isto decorre, como
analisaremos mais adiante, com mais vagar, do fato de que, em certo momento de
sua experiência existencial, os oprimidos assumem uma postura que chamamos de
“aderência” ao opressor.
Nestas
circunstâncias, não chegam a “admirá-lo”, o que os levaria a objetivá-lo, a
descobri-lo fora de si. A superação da contradição é o parto que traz ao mundo
este homem novo não mais opressor; não mais oprimido, mas homem libertando-se.
Esta superação não pode dai-se, porém, em termos puramente idealistas.
Se faz indispensável aos oprimidos, para a
luta por sua libertação, que a realidade concreta de opressão já não seja para
eles uma espécie de “mundo fechado” (em que se gera o seu medo da liberdade) do
qual não pudessem sair, mas uma situação que apenas os limita e que eles podem
transformar, é fundamental, então, que, ao reconhecerem o limite que a
realidade opressora lhes impõe, tenham, neste reconhecimento, o motor de sua
ação libertadora.
A pedagogia do oprimido, que busca a
restauração da intersubjetividades, se apresenta como pedagogia do Homem.
Somente ela, que se anima de generosidade autêntica, humanista e não
“humanitarista’, pode alcançar este objetivo. Pelo contrário, a pedagogia que,
partindo dos interesses egoístas dos opressores, egoísmo camuflado de falsa
generosidade, faz dos oprimidos objetos de seu humanitarismo, mantém e encarna
a própria opressão. Ë instrumento de desumanização.
Na análise da situação concreta, existencial,
de opressão. não podemos deixar de surpreender o seu nascimento num ato de
violência que é inaugurado, repetimos, pelos que têm poder. Esta violência,
como um processo, passa de geração a geração de opressores, que se vão fazendo
legatários dela e formando-se no seu clima geral. Este clima cria nos
opressores uma consciência fortemente possessiva.
Possessiva do mundo e dos homens. Fora da
posse direta, concreta, material, do mundo e dos homens, os opressores não se
podem entender a si mesmos. Àqueles que se comprometem autenticamente com o
povo e indispensável que se revejam constantemente. Esta adesão é de tal forma
radical que não permite a quem a faz comportamentos ambíguos. Dai que esta
passagem deva ter o sentido profundo do renascer.
Os que passam têm de assumir uma forma nova
de estar sendo; já não podem atuar como atuavam; já não podem permanecer como
estavam sendo. Quanto mais analisamos as relações educador-educandos, na
escola, em qualquer de seus níveis (ou fora dela), parece que mais nos podemos
convencer de que estas relações apresentam um caráter especial e marcante — o
de serem relações fundamentalmente narradoras, despertadoras.
Na medida em que esta visão “bancária” anula
o poder criador dos educandos ou o minimiza. estimulando sua ingenuidade e não
sua criticidade, satisfaz aos interesses dos opressores: para estes, o
fundamental não é o desnudamento do mundo, a sua transformação.
O seu “humanitarismo”, e não humanismo, está
em preservar a situação de que são beneficiários e que lhes possibilita a
manutenção de sua falsa generosidade a que nos referimos no capítulo anterior.
Por isto mesmo é que reagem, até instintivamente, contra qualquer tentativa de
uma educação estimulante do pensar autêntico, que não se deixa emaranhar pelas
visões parciais da realidade, buscando sempre os nexos que prendem um ponto a
outro, ou um problema a outro.
A concepção e a prática da educação que vimos
criticando se Instauram como eficientes instrumentos para este fim. Dai que um
dos seus objetivos fundamentais, mesmo que dele não estejam advertidos muitos
do que a realizam, seja dificultar, em tudo, o pensar autêntico.
Nas aulas verbalistas, nos métodos de
avaliação dos “conhecimentos’, no chamado “controle de leitura”, na distância
entre o educador e os educandos, nos critérios de promoção, na indicação
bibliográfica, em tudo, há sempre a conotação “digestiva” e a proibição ao
pensar verdadeiro.
Como ato de valentia, não pode ser piegas;
como ato de liberdade, não pode ser pretexto para a manipulação, senão gerador
de outros atos de liberdade. A não ser assim, não é amor. Somente com a
supressão da situação opressora é possível restaurar o amor que nela estava
proibido. Se não amo o mundo, se não amo a vida, se não amo os homens, não me é
possível o diálogo.
Esta concepção “bancária” implica, além dos
interesses já referidos, outros aspectos que envolvem sua falsa visão dos
homens. Aspectos ora explicitados, ora não, em sua prática.
Sugere uma dicotomia inexistente
homens-mundo. Homens simplesmente no mundo e não com o mundo e com os outros.
Homens espectadores e não recriadores do mundo. Concebe a sua consciência como
algo espacializado neles e não aos homens como “corposconscientes’.
Não seriam poucos os exemplos que poderiam
ser citados, de planos, de natureza política ou simplesmente docente, que falharam
porque os seus realizadores partiram de uma visão pessoal da realidade. Porque
não levaram em conta, num mínimo instante, os homens em situação a quem se
dirigia seu programa, a não ser com puras incidências de sua ação.
Para o educador humanista ou o revolucionário
autêntico a incidência da ação é a realidade a ser transformada por eles com os
outros homens e não estes. A consciência como se fosse alguma seção “dentro’
dos homens, mecanicistamente compartimentada, passivamente aberta ao mundo que
a irá “enchendo” de realidade.
Uma consciência continente a receber
permanentemente os depósitos que o mundo lhe faz, e que se vão transformando em
seus conteúdos. Como se os homens fossem uma presa do mundo e este um eterno
caçador daqueles, que tivesse por distração “enchê-los” de pedaços seus.
Em síntese, as “situações-limites” implicam a
existência daqueles a quem direta ou indiretamente “servem” e daqueles a quem
“negam” e “freiam. No momento em que estes as percebem não mais como uma
“fronteira entre o ser e o nada, mas como uma fronteira entre o ser e o mais
ser”, se fazem cada vez mais críticos na sua ação, ligada àquela percepção.
Percepção em que está implícito o medito viável como algo definido, a cuja
concretização se dirigirá sua acão.
Teoricamente, é lícito esperar que os indivíduos passem a comportar-se
em face de sua realidade objetiva da mesma forma, do que resulta que deixe de
ser ela um beco sem saída para ser o que em verdade é: um desafio ao qual os
homens têm que responder.
É preciso que nos convençamos de que as
aspirações, os motivos, as finalidades que se encontram explicitados na
temática significativa são aspirações, finalidades, motivos humanos. Por isto,
não estão ai, num certo espaço, como coisas petrificadas, mas estão sendo. São
tão históricos quanto os homens. Não podem ser captados fora deles, insistamos.
Precisamos estar convencidos de que o
convencimento dos oprimidos de que devem lutar por sua libertação não é doação
que lhes faça a liderança revolucionária, mas resultado de sua conscientização.
É necessário que a liderança revolucionária
descubra esta obviedade: que seu convencimento da necessidade de lutar, que
constitui uma dimensão indispensável do saber revolucionário, não lhe foi doado
por ninguém, se é autêntico. Chegou a este saber, que não é algo parado ou
possível de ser transformado em conteúdo a ser depositado nos outros, por um
ato total, de reflexão e de ação.
Este é o caso de um “reconhecimento” de
caráter puramente subjetivista, que é antes o resultado da arbitrariedade do
subjetivista, o qual, fugindo da realidade objetiva, cria uma falsa realidade
“em si mesmo”. E não é possível transformar a realidade concreta na realidade
imaginária.
Se os indivíduos se encontram aderidos a
estas “situações-limites”, impossibilitados de “separar”-se delas, o seu tema a
elas referido será necessariamente o do fatalismo e a “tarefa” a ele associada
é a de quase não terem tareia. Por isto é que, embora as “situações-limites”
sejam realidades objetivas e estejam provocando necessidades nos indivíduos se
impõe investigar, com eles, a consciência que delas tenham.
Uma “situação-limite”, como realidade
concreta, pode provocar em indivíduos de áreas diferentes, e até de subáreas de
uma mesma área, temas e tarefas opostos, que exigem, portanto, diversificação
programática para o seu desvelamento.
O importante,
do ponto de vista de uma educação libertadora. e não “bancária”, é que, em
qualquer dos casos, os homens se sintam sujeitos de seu pensar, discutindo o
seu pensar, sua própria visão do mundo, manifestada implícita ou explicitamente
nas suas sugestões e nas de seus companheiros.
Para dominar, o dominador não tem outro
caminho senão negar às massas populares a práxis verdadeira. Negar-lhes o
direito de dizer sua palavra, de pensar certo. As massas populares não têm que,
autenticamente, “ad-mirar” o mundo, denunciá-lo, questioná-lo, transformá-lo
para a sua humanização, mas adaptar-se à realidade que serve ao dominador.
Esta é outra dimensão fundamental da teoria
da ação opressora, tão velha quanto a opressão mesma. Na medida em que as
minorias, submetendo as maiorias a seu domínio, as oprimem dividi-las e
mantê-las divididas são condição indispensável à continuidade de seu podei Não
se podem dar ao luxo de consentir na unificação das massas populares. que
significaria. indiscutivelmente. uma séria ameaça à sua hegemonia.
Daí que toda ação que possa, mesmo
incipientemente proporcionar às classes oprimidas o despertar para que se unam
é imediatamente freada pelos opressores através de métodos, inclusive fisicamente
violentos.
A manipulação, com toda a sua série de
engodos e promessas, encontra aí, quase sempre, um bom terreno para vingar.
Finalmente, surpreendemos na teoria da ação antidialógica uma outra
característica fundamental — a invasão cultural que, como as duas anteriores,
serve à conquista.
Desrespeitando as potencialidades do ser a
que condiciona, a invasão cultural é a penetração que fazem os invasores no
contexto cultural dos invadidos, impondo a estes sua visão do mundo, enquanto
lhes freiam a criatividade, ao inibirem sua expansão
.
Neste sentido, a invasão cultural,
indiscutivelmente alienante, realizada maciamente ou não, é sempre uma
violência ao ser da cultura invadida, que perde sua originalidade ou se vê
ameaçado de perdê-la. Os oprimidos só começam a desenvolver-se quando,
superando a contradição em que se acham, se fazem “seres para si”.
Se, agora, analisamos uma sociedade também
como ser, parece-nos concludente que, somente como sociedade “ser para si”,
sociedade livre, poderá desenvolver-se. Não é possível o desenvolvimento de
sociedades duais, reflexas, invadidas, dependentes da sociedade metropolitana,
pois que são sociedades alienadas, cujo ponto de decisão política, económica e
cultural se encontra fora delas — na sociedade metropolitana.
A importância de seu papel, contudo, não lhe
dá o direito de comandar as massas populares, cegamente, para a sua libertação.
Se assim fosse, esta liderança repetiria o messianismo salvador das elites
dominadoras, ainda que, no seu caso, estivessem tentando a “salvacão” das
massas populares. A liderança há de confiar nas potencialidades das massas a
quem não pode tratar como objetos de sua acão. Há de confiar em que elas são
capazes de se empenhar na busca de sua libertação, mas há de desconfiar, sempre
desconfiar, da ambigüidade dos homens oprimidos.
Desconfiar dos homens oprimidos, não é,
propriamente, desconfiar deles enquanto homens, mas desconfiar do opressor “hospedado”
neles. Seria uma inconsequência da elite dominadora se consentisse na
organização das massas populares oprimidas, pois que não existe aquela sem a
união destas entre si e destas com a liderança. Enquanto que, para a elite
dominadora, a sua unidade interna, que lhe reforça e organiza o poder, implica
a divisão das massas populares, para a liderança revolucionaria, a sua unidade
só existe na unidade das massas entre si e com ela.
Reconhecem-se, agora, como seres
transformadores da realidade, para eles antes algo misterioso, e
transformadores por meio de seu trabalho criador. Descobrem que, como homens,
já não podem continuar sendo quase-coisas” possuidas e, da consciência de si
como homens oprimidos, vão à consciência de classe oprimida. Enquanto, na
teoria da ação antidialógica, a manipulação, que serve à conquista, se impõe
como condição indispensável ao ato dominador, na teoria dialógica da ação,
vamos encontrar, como seu oposto antagônico, a organização das massas
populares.
A
organização não apenas está diretamente ligada à sua unidade, mas é um
desdobramento natural desta unidade das massas populares. Finalmente, a invasão
cultural, na teoria antidialógica da ação, serve à manipulação que, por sua
vez, serve à conquista e esta à dominação, enquanto a síntese serve à
organização e esta à libertação.
Todo o nosso esforço neste ensaio foi falar
desta coisa óbvia: assim como o opressor, para oprimir, precisa de uma teoria
da ação opressora, os oprimidos, para se libertarem, igualmente necessitam de
urna teoria de sua ação.
O opressor elabora a teoria de sua ação
necessariamente sem o povo, pois que é contra ele. O povo, por sua vez, enquanto
esmagado e oprimido, introjetando o opressor, não pode, sozinho, constituir a
teoria de sua ação libertadora. Somente no encontro dele com a liderança
revolucionária, na comunhão de ambos, na práxis de ambos, é que esta teoria se
faz e se re-faz.
Em verdade, não seria possível à educação
problematizadora, que rompe com os esquemas verticais característicos da
educação bancária, realizar-se como prática da liberdade, sem superar a
contradição entre o educador e os educandos. Como também não lhe seria possível
fazê-lo fora do diálogo.
Ë através deste que se opera a superação de
que resulta um termo novo: não mais educador do educando, não mais educando do
educador, mas educador-educando com educando-educador.
A educação problematizadora se faz, assim, um
esforço permanente através do qual os homens vão percebendo, criticamente, como
estão sendo no mundo com que e em que se acham.
Se, de fato, não é possível entendê-los fora
de suas relações dialéticas com o mundo, se estas existem independentemente de
se eles as percebem ou não, e independentemente de como as percebem, é verdade
também que a sua forma de atuar, sendo esta ou aquela, é função, em grande
parte, de como se percebam no mundo.
A percepção ingênua ou mágica da realidade da
qual resultava a postura fatalista cede seu lugar a uma percepção que é capaz
de perceber-se. E porque é capaz de perceber-se enquanto percebe a realidade
que lhe parecia em si inexorável, é capaz de objetivá-la.
REFERÊNCIAS
BIBLIOGRÁFICAS
FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. 17 ª edição. Paz e Terra. Rio de Janeiro:
1987.
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